Antonio Carlos de Souza Lima Mesa 3:
Problemas de qualificação
de pessoal para novas formas de ação indigenista
Sabemos há bastante tempo
da carência não apenas de pessoal qualificado, capaz de desenvolver
ações orientadas por diretrizes fixadas de acordo com avaliações e
planos de trabalho para atuar nos problemas enfrentados pelas populações
indígenas, mas também de mecanismos institucionais de capacitação
de pessoal para a ação indigenista, tanto para planejamento e avaliação
quanto para execução direta. Esse vazio é generalizado:
abarca a inexistência de um movimento regular de produção, aglutinação
e publicização de conhecimentos sobre os problemas concretos enfrentados
pelos índios em processos sociais nos quais se defrontam com alternativas
e compulsões ao desenvolvimento. Tal perspectiva se estende
desde os antigos projetos de desenvolvimento comunitário da
Fundação Nacional do Índio, passando pelas alternativas propostas
por antropólogos para diferentes sociedades indígenas, até as formas
atuais, caracterizadas pelo moto, mais uma vez originário dos
países metropolitanos, do desenvolvimento auto-sustentado. Mas esse é apenas um dos
itens de uma falta de conhecimento mais ampla, envolvendo os aspectos
atuais da inserção das sociedades indígenas nas dinâmicas políticas
locais, regionais e nacionais, em interação com instituições governamentais
e/ou não governamentais e com organismos de financiamento internacional
(cooperação bilateral, multilateral, entidades filantrópicas etc.),
bem como as estratégias da crescente participação política indígena
através de suas organizações e de sua inserção na vida política municipal
e regional ou na administração pública federal. Tampouco sabemos muito
sobre suas formas de organização para lidar com transformações sociais
cujas diretrizes são oriundas dos centros de poder decisório do país
e do mundo globalizado, com ideais e metas que escapam aos índios,
embora muitas vezes incorporem suas sociedades como supostas fontes
de inspiração e alvos privilegiados de ação. Etnograficamente, sabe-se
pouco sobre os problemas sociais enfrentados pelas sociedades indígenas,
sejam eles os das áreas fundiária, da saúde, da educação e dos suportes
para planos de desenvolvimento segundo seus parâmetros e projetos,
sejam das atividades de dinamização de caráter cultural e de preservação
da memória social. Hoje, felizmente, estamos longe (embora às vezes
não muito) do apogeu do poder tutelar como exercido em períodos altamente
discricionários da história da FUNAI e do SPI, e sem dúvida também
nos afastamos dia-a-dia de seu transbordamento para instâncias não
governamentais, em uma espécie de “tutela civil”. Sempre se pode restringir uma
reflexão dessa natureza a uma espécie de mea culpa antropológico
ou a uma infindável discussão sobre o que é ou não papel da ciência
em geral e da antropologia em particular, o porquê de, em meio à era
dos estudos pós-coloniais, não estarmos investindo mais seriamente
nesses temas. Não quero enveredar por esse caminho. Vale a pena lembrar,
contudo, que em termos financeiros, emocionais e de tempo, as pesquisas
etnológicas são custosas, e que, no Brasil, via de regra o antropólogo
pensa que deve se tornar um aliado das sociedades indígenas, idéia
que muitas delas rejeitam. Com o pouco tempo de doutorado[1],
a falta de recursos e a mentalidade de auditoria, que apresenta números
em vez de qualidade, tudo ficará pior. Não há “especialistas” para
cada uma das sociedades indígenas existentes no país, e os tão criticados
antropólogos da FUNAI, muitos hoje aposentados, fizeram o que era
possível em condições muitíssimo adversas, acumulando conhecimento
prático sobre numerosos aspectos, sobretudo os relativos ao processo
de regularização das terras indígenas, mas, lidando com seu progressivo
desmantelamento administrativo, não tiveram como implantar novas áreas
de atuação dentro do aparelho indigenista, menos ainda como escrever
sobre o que sabem. Existem tarefas a ser cumpridas – muitas tendo
se ampliado fora do âmbito da FUNAI, ou seja, longe da idéia de uma
única estrutura centralizadora de controle sobre os índios pelo direito
de manipular um status jurídico, apanágio do apogeu do poder
tutelar –, e o fato é que se necessita de pessoal para executá-las. Vamos ao concreto e ao cotidiano:
diante dos recursos para numerosas identificações de terras indígenas,
dos levantamentos socioambientais em profusão e da demanda por antropólogos
em posições variadas da administração pública, lidando com questões
candentes a exigirem preparo metodológico para subsidiar (ou realizar)
tomadas de decisão rápidas, muitas vezes não há profissionais com
a formação acadêmica adequada. Como “corporação de ofício”, sempre
insistimos que a instância formadora de antropólogos é a pós-graduação,
ao contrário dos advogados, que saem da graduação e das provas da
OAB “brevetados” para o que quer que seja, e dos médicos, cujo estudo
mais demorado, mas essencialmente prático, não tem a necessidade de
reflexividade implicada no trabalho escrito. Quando os quadros existem,
em geral não têm o preparo necessário ao tipo de trabalho demandado
nas tarefas da administração: precisam de (pré-)treinamento, muitas
vezes nos planos metodológicos mais elementares, e de uma certa ampliação
do universo de ideologias em jogo nos mundos sociais que enfrentarão,
ou seja, um mapa social de quem é quem, onde e quando. Isso é algo
que as rotinas de pesquisa de campo, quando bem treinadas, podem ensinar
a produzir, sobretudo as voltadas para a análise de conflitos e da
ação política. Antropologia, afinal, não é jornalismo, e o trabalho
de campo como o entendemos tampouco se assemelha ao do geógrafo, preparado
para outras escalas e por isso mais rápido. Trata-se, na verdade,
do singular processo de retirar dos jovens que se dispõem a ser etnógrafos
o que por vezes parecem verdadeiros antolhos, adquiridos ao longo
da graduação e da pós-graduação ou pura e simplesmente fruto da inocência
e da precipitação. Seja qual for o exercício
legítimo da antropologia, amplia-se o mercado de trabalho extra-universitário,
enquanto o universitário se retrai: passou o tempo da estratégia do
avestruz, quando podíamos não ver que, para o profissional em antropologia,
há demandas muito diferentes daquelas para as quais em geral é treinado,
isto é, ser professor universitário – professor, não pesquisador,
ou seja, reprodutor de conhecimento, e não produtor criativo. Passou
também o tempo da arrogância, em que o jovem antropólogo, desejoso
da “academia” e frustrado por estar fora dela, procurava transportar
os modelos mais vibrantes das teorias antropológicas que aprendera
para, infantil e orgulhosamente, aplicá-los ipsis litteris às
situações que precisava ajudar a compreender e para as quais tinha
de subsidiar propostas de resolução, produzindo verdadeiros tratados
de esoterismo diante de suas tarefas objetivas. Em consolo destes,
eu diria que seu desterro seria menor se, dispondo dos instrumentos
de nossa disciplina, conseguissem exercer no cotidiano a desnaturalização
contínua que se pede ao antropólogo em campo. Sei das dificuldades
dessa atitude, mas, em certo sentido, é sempre mais fácil exercer
o engajamento e a distância longe de casa. Também estamos longe das
soluções oferecidas pela narrativa encantatória do que se poderia
chamar de “via da militância cidadã”: a bastante fantasiosa suposição
de que, por sermos cidadãos do mesmo país das sociedades indígenas
que pesquisamos, em um suposto “estilo brasileiro de etnologia”, estaríamos
em estado de “engajamento permanente”, o que nos permitiria, ao estudarmos
um tema localizado sobre uma sociedade indígena específica (ou um
grupo camponês, dá no mesmo), opinar sobre fenômenos e dinâmicas passadas
em escalas e domínios da vida social sobre os quais a formação do
pesquisador é nenhuma. Um bom exemplo disso é o uso infantil do conceito
de Estado por alguns renomados pesquisadores em antropologia no Brasil. Algumas alterações poderiam
surgir se, em vez desse conjunto de estereótipos sobre seu fazer profissional,
a atitude do antropólogo em trabalhos “aplicados” (alguns apenas para
“ganhar a vida”, parte muito importante da de todos nós) fosse a de
um humilde “profissional do estranhamento”, que exerceria uma atitude
dialógica, seja no interior da administração pública, seja debatendo
com uma comunidade indígena sobre as visões acerca da definição dos
limites de uma terra indígena, negociando e traduzindo significados
entre índios, advogados, agrônomos, engenheiros florestais, médicos
e funcionários de variadas instituições estatais, “lendo” e gerindo
os conflitos inerentes à vida social, talvez do ângulo da geração
de conhecimento inovador, passando pela necessidade de textualizar
o conhecimento que gera permanentemente e em diferentes registros,
artefato político que todo texto é. Já insisti sobre o quanto, no
Brasil, a graduação e a pós-graduação (Souza Lima 1995; 1998) não
conseguem inculcar as disposições que levam à reflexão em ato sobre
o que se faz quando se estuda dessa ou daquela forma uma dada situação
social, o que o aligeiramento da formação pós-graduada, sob o signo
da “cultura de auditoria” que nos assola, só vem contribuir para piorar.
De nada adianta ter uma parafernália de métodos e nenhuma percepção
das questões sociais em jogo, mas tampouco serve para grande coisa
ser incapaz de fazer os registros mínimos sobre a realidade social
com que o pesquisador se defronta: suponho que não apenas o “olhar
antropológico” (sic), mas censos, mapas, fichas de coleta sistemática
de observações, passíveis de serem objetivadas e quantificadas, genealogias
e um caderno de campo que não seja um amontoado de devaneios auto-referidos
também servem para produzir dados. Se esses problemas são um
fato, é importante dizer que também existem numerosas experiências
desenvolvidas por antropólogos, graduados e pós-graduados, docentes
ou não, dentro e fora dos aparelhos de governo, que implicaram práticas
inovadoras, experiências instigantes cujos resultados representam
avanços em questões vitais para as sociedades indígenas no Brasil.
Muitas não foram escritas, outras estão em relatórios a agências financiadoras
ou em pequenos textos de encontros setoriais. Poucas foram matéria
de reflexão em teses e dissertações, menos ainda foram publicadas
sob quaisquer formas. Sem dúvida, a hierarquia objetivada nos jogos
do establishment intelectual e nas pautas de editoras e periódicos
explica parte dessa não-divulgação. Aliás, muitas financiadoras de
pesquisas e organismos de cooperação parecem supor que formas marcadas
pela oralidade, como workshops, reuniões e manuais (nunca muito
grandes), são mais que suficientes para a geração de conhecimentos.
Duvido muito. Os próprios produtores desses trabalhos, contudo, carregando
consigo imagens da produção de conhecimento eivadas de posições epistemológicas
unívocas e consagradas, deixaram de se validar como autores, crendo
que a “verdadeira antropologia” está alhures. Com isso, perde-se a
possibilidade de submeter suas experiências à crítica e usá-las para
ensinar outras dimensões dos fazeres antropológicos no Brasil atual. Concentro-me na antropologia
produzida no Brasil porque, pela via tanto da crítica quanto da intervenção,
ela vem sendo um articulador fundamental nas inovações das políticas
de Estado para populações indígenas. Valeria a pena pensar algo semelhante
para as esferas do direito, dos saberes médicos e das ciências voltadas
para o meio ambiente. Do que conheço desses cursos, sua percepção
social é mínima: quando existem disciplinas como sociologia, antropologia,
política ou algum derivado, são uma espécie de confeito feio e ruim
do bolo. Na faculdade de Direito, são sempre ministradas por um bacharel
do mesmo curso, subsumidas à visão normativa característica das “ciências
jurídicas”, servindo somente para reforçar a pretensão de conhecimento
e fornecer novas palavras ao jogo retórico. E para que tê-las, afinal?
Ao implantar a disciplina de Antropologia Jurídica no novo currículo
da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
perguntei a uma turma do terceiro período o que fariam ao terminar
a faculdade. “Concurso!”, responderam em uníssono. Crescem os problemas
jurídicos ligados a direitos coletivos, meio ambiente e propriedade
intelectual, e, apesar de currículos “inovadores” como o da UFRJ,
duvido que os recém-formados tenham ouvido falar deles. O diálogo
com as ciências sociais é imprescindível, e talvez nós, antropólogos,
devamos dar um passo nessa direção estudando o curioso ethos
jurídico. Antes disso, contudo, é
preciso pensar em um segmento diretamente ligado às populações indígenas:
o daqueles que se definem como indigenistas. Parto para isso
da definição organizacional do termo, que em seu sentido estrito se
aplica à categoria burocrática dos técnicos em indigenismo da
FUNAI. Seria melhor ampliá-la a todos os funcionários do aparelho
indigenista, dentro ou fora da FUNAI, ou a todos, qualquer que seja
sua formação acadêmica, que passaram por ritos de treinamento como
os cursos de indigenismo, por exemplo, integraram ou integram
certas redes sociais e comungaram de certos pressupostos ideológicos
em seu trabalho com as sociedades indígenas. A preocupação em treinar
pessoal para o trabalho direto com as sociedades indígenas, notadamente
para a função de chefe de Posto Indígena, não é nova. Na década
de 1940, já estava implícita na proposta de criação de um “instituto
indigenista brasileiro”. Na de 1950, a formação de pessoal técnico
de maior qualificação, capacitado pelo exercício da pesquisa em antropologia
a imprimir um padrão de inspiração “científica” ao trabalho com as
populações indígenas, foi um dos principais objetivos da criação de
um curso de especialização na disciplina, desenvolvido no Museu do
Índio e organizado por Darcy Ribeiro, com a participação de integrantes
de outras instituições de pesquisa e ensino, entre elas o Museu Nacional,
através da presença de Luiz de Castro Faria. No serviço de documentação
do Museu do Índio, encontra-se um documento microfilmado datado de
1965, pouco antes do fim do Serviço de Proteção aos Índios (SPI),
no qual se propõe a criação de uma “escola de indigenismo”. Mas seria com a criação
da FUNAI, ou seja, com o surgimento oficial do cargo de técnico
em indigenismo, que se faria sentir uma necessidade ainda mais
aguda de treinar pessoal para o exercício de uma série de funções.
As discussões iniciais de criação da FUNAI retomaram essa questão,
quando por breve tempo um conselho deliberativo se propôs a pensar
um novo modelo de ação do Estado junto às sociedades indígenas. Mas
o primeiro curso de treinamento de técnico de indigenismo,
proposto em 1969 e realizado em 1970 – primeiro de uma série de dez
finda em 1985 –, começou já no período militar e desenvolvimentista,
quando o imperativo era a expansão para a região amazônica (Davis
1978). Seu propósito inicial era não apenas treinar novos funcionários,
mas também qualificar os quadros de ação direta já existentes, muitos
deles sem segundo grau, exigência que se deveria cumprir para ascender
ao cargo de técnico em indigenismo. Os profissionais eram recrutados
localmente, vindos da administração do SPI e, como exerciam de direito
funções inferiores, mas eram de fato chefes de Posto, era necessário
dar-lhes os diplomas necessários à ascensão profissional. Essa mescla
entre concursados e antigos funcionários continuou existindo durante
bom tempo. Os conteúdos do curso também
refletiam a época: de início, marcadas as intenções desenvolvimentistas
do aparelho, os cursos se voltavam sobretudo para as técnicas agrícolas
que deveriam ser ensinadas aos índios, noções de “desenvolvimento
comunitário” e primeiros socorros, sobrevivência na selva, operação
de rádio e rotinas burocrático-administrativas da FUNAI. Pouco a pouco,
outros conhecimentos foram incorporados: noções de sociologia, antropologia
e sobretudo estudos etnológicos, além de técnicas lingüísticas. Para
alguns participantes, tudo era novidade; para outros, era “chover
no molhado”: mesmo entre os concursados e novos pretendentes a cargos
havia experiências de vida distintas e diferentes níveis de informação
sobre a questão indígena. A exigência feita ao candidato ao concurso
para técnico em indigenismo era o segundo grau, o ensino médio
no Brasil não inclui sociologia nem antropologia e a presença indígena
nos estudos de história e geografia é superficial e simplificadora.
Aliás, salvo engano, inexistem no Brasil cursos profissionalizantes
de segundo grau na área de ciências sociais. Muitas têm sido as críticas
nessa direção, e o despreparo é um problema mesmo para o futuro aluno
de graduação em ciências sociais e história. O curso contava ainda com
outras duas formas de transmissão de conhecimento: palestras de indigenistas
experientes, ou seja, funcionários da FUNAI (alguns vindos do SPI)
com longa experiência entre populações indígenas, alguns conhecedores
dos processos de atração e pacificação de grupos arredios ou hostis;
e, após a parte “teórica” do curso, um “estágio de campo”: idealmente,
o pretendente ao cargo deveria se deslocar para um Posto Indígena
da FUNAI, no qual trabalharia sobre a supervisão de um chefe de Posto,
produzindo ao fim um relatório. Essa dimensão do curso merece atenção. As palestras e o estágio
criavam um espaço de transmissão de conhecimento que, prático que
fosse, permitia aos neófitos identificar o que viriam a fazer, ter
acesso à “tradição” de trabalho e conviver com diferentes imagens
do trabalho indigenista, além de se verem obrigados a escrever sobre
suas experiências de trabalho, algo que fez parte das rotinas dos
chefes de Posto antes que o progressivo desmantelamento da estrutura
administrativa da FUNAI, a inexistência de recursos destinados ao
desenvolvimento de projetos e a falta de outros suportes justificassem
e instituíssem definitivamente a oralidade como registro preferencial.
Na verdade, os relatórios atendiam também a uma função até hoje não
cumprida pela estrutura organizacional da FUNAI: recolher e sistematizar
informações sobre o que se passa nas áreas indígenas para enviá-las
à administração central. Os relatos dos estágios
nem sempre foram de experiências positivas. Lendo o material ou ouvindo
os que passaram pelo curso, com freqüência se tem a impressão de que
o estágio adiantava uma crítica feita por muitos à Fundação: a de
que o funcionário em área indígena conta consigo mesmo e com as boas
relações que conseguir estabelecer, sendo jogado à sua própria sorte
e tendo muitas vezes de aprender, já de saída, a lutar contra segmentos
do próprio aparelho a que pertence. Nesse sentido, o curso de
1985 apresentou um diferencial. Gerado em um momento no qual os quadros
que haviam sido expurgados do aparelho ao longo dos momentos mais
duros do regime ditatorial voltavam à FUNAI, tinha uma intenção crítica
declarada. Pretendia-se formar profissionais críticos da ação indigenista
do Estado que rompessem com alguns vícios consagrados na prática do
trabalho indigenista, em diálogo com experiências produzidas por antropólogos,
missionários e indigenistas da FUNAI que desenvolveram práticas alheias
às do controle tutelar mais estrito – ou simplesmente alheias a procedimentos
corruptos e corruptores –, pensando a tarefa indigenista menos como
mediação e mais como assessoramento e parceria com as sociedades indígenas.
Assim, esperava-se vivificar a prática indigenista e dar um passo
na reformulação da máquina administrativa da FUNAI. Contudo as estruturas
de poder logo se mostraram muito superiores às capacidades individuais
e de grupos de imporem novos rumos. Uma vez “formado”, o técnico
era deslocado para uma área indígena, na qual tinha de desenvolver
seu trabalho do jeito que fosse possível. Muitas vezes, tudo que se
pôde fazer foi figurar no nível local a existência de uma autoridade
federal, um elo isolado capaz de se articular e transmitir informações
para fora da área em busca de auxílio. No limite, e uma vez que não
existiam recursos disponíveis para o desenvolvimento de atividades
de interesse de e para os grupos indígenas, o que muitas vezes acontecia
era que o indigenista ficava em estado de perplexidade solitária,
sem diálogo, sem troca de cunho intelectual com outros técnicos da
FUNAI e, quando não os via como potenciais inimigos e rivais, com
eventuais antropólogos ou missionários, ou mesmo com os índios. O
resultado era que, se não lhe cobravam um plano de trabalho já de
saída, logo era impossível ter propostas claras de intervenção. Outras
vezes, a solução possível foi empregar os próprios indígenas na estrutura
da FUNAI ou conseguir aposentadorias pelo FUNRURAL como forma de obter
recursos para mitigar a fome e a doença. Desde a administração de
Márcio Santilli na presidência da FUNAI, sabemos publicamente o quanto
o número de funcionários indígenas é expressivo. Sem sistema de qualificação
ou ascensão por mérito na carreira indigenista, muitas vezes o técnico,
quando começava a conhecer um povo, era transferido para outro e tinha
de recomeçar. Ou então saía de campo, indo para outras instâncias
de uma administração armada de modo que os postos fossem necessários. Mas estamos falando dos
“indigenistas do bem”. Muitas vezes, cioso de seu micropoder e orgulhoso
da tutela, o indigenista se transformava em régulo local, como há
muitos na administração pública brasileira, gerindo clientelas e se
engajando em todo tipo de prática corrupta. Em algumas situações,
o heroísmo que sempre perpassou muitas das intenções de trabalho com
as sociedades indígenas levou à arrogância e ao antagonismo às alianças
com atores externos à agência e às formas de registro e reflexão sobre
um trabalho tão delicado como aquele que envolve a vida de comunidades
humanas, sempre demasiadamente grande para um homem só. Mas não é o momento de recuperar
esse capítulo da história do indigenismo no Brasil. Minha intenção,
ao destacar como se formaram os técnicos em indigenismo, é
simplesmente mostrar, de maneira homóloga aos traços mencionados para
a antropologia, que a precariedade das rotinas e processos de treinamento
para a ação com sociedades indígenas foi e é muito grande, conquanto
existam experiências importantes que deveriam estar registradas, pensadas
e criticadas (no sentido intelectual do termo) para servirem à concepção
de novas formas de atuação e à preparação de futuros profissionais.
Já há algum tempo, a busca de reflexão sobre as práticas indigenistas
têm conduzido a repensar a FUNAI desde dentro, tendo sido feitos workshops,
fóruns de discussão e oficinas de trabalho, o que aponta para a percepção,
por parte relevante da agência, da necessidade de aglutinar informações
e repensá-las. Entretanto tenho às vezes a sensação de que certos
setores da FUNAI acham que já sabem de tudo, que consultorias, revisões
de estrutura, outros modos de ação indigenista e novos paradigmas
de ação são bobagens: só é preciso ter dinheiro e as pessoas certas
nos lugares certos. Nada me parece tão simples. Afinal, eu me pergunto,
por que um indivíduo que passou uma parte enorme de sua vida dedicado
a um trabalho tão amplamente envolvente quanto o indigenista, quando
resolve estudar trata de temas que se distanciam de sua prática cotidiana,
às vezes extraordinariamente rica e que, relatada, contribuiria para
a prática de outros? Com isso, enfatizo o mesmo
que enfatizei para a antropologia e aventei possa ser o caso das áreas
jurídica e sanitária: faltam estudos e sistematização de experiências,
debates explícitos e fóruns regulares, textos escritos desses estudos,
estímulo à reflexão como parte do trabalho indigenista, estruturas
nas quais material acumulado e reflexão virem parte de treinamentos
regulares – e recursos para fazer tudo isso. E quanto aos próprios índios
e os problemas que enfrentam para se qualificarem a lidar com seus
problemas socioculturais? Sabemos menos ainda, apesar do muito que
se escreveu sobre educação indígena – tema do qual entendo pouco e
no qual não me deterei –, e de uma espécie de consenso (não majoritário
nem absoluto) sobre a educação bilingüe. Faltam estudos e sobretudo
saber exatamente quais são as demandas das sociedades indígenas. No
momento, algumas das maiores preocupações são com a necessidade de
capacitá-las a concorrer a diversos mecanismos de fomento. Para tanto,
devem proliferar os cursos de treinamento e os métodos de montagem,
que se impõem pelos formatos nos quais os projetos devem ser apresentados
aos financiadores: é necessário criar um conjunto de dispositivos
que ultrapassem as formas de discriminação implícitas em documentos
como formulários de pedidos de projetos e similares. O texto de Gilberto Azanha
sinaliza para alguns desses problemas e há 14 anos João Pacheco e
Alfredo Wagner chamavam a atenção para o fato de que as práticas rotineiras
de definição de terras indígenas excluem as populações indígenas.
Esse foi um dos pontos de um conjunto de críticas desenvolvidas à
regularização de terras indígenas, na verdade parte de uma crítica
intelectual e social feita por diversos setores e agências ao indigenismo.
Espero que não precisemos repetir todo o caminho agora, com a idéia
de desenvolvimento sustentado. Se muita coisa mudou, parece-me que
alguns aspectos das estruturas de conhecimento e poder permanecem.
Precisamos debater sem ufanismo, maximizando os recursos existentes
e reformulando o que for necessário. Para tanto, contudo, é preciso
conhecer as iniciativas como as do centro de treinamento de Goiânia,
os processos de treinamento que vêm sendo possibilitados por organizações
indígenas e ONG’s, a experiência com diversos níveis do processo escolar
oficial e alternativo, as experiências de formação universitária de
índios e sua repercussão para suas sociedades e organizações. Sobretudo,
é preciso saber dos interesses das sociedades e organizações indígenas
e da utilidade, por exemplo, de um treinamento em técnicas de pesquisa
em ciências sociais que lhes fossem úteis nas atividades que queiram
desenvolver. Creio que, antes de impor uma pauta que sirva a financiadores
e financiados extralocais, é dessa fonte que devem provir as demandas. Não há sentido em propor
um perfil de profissional para atuar nas questões indígenas se não
se tem delineado um perfil de ação governamental, e esse é o ponto
de partida para uma reflexão mais aprofundada e destinada à planificação.
Há necessidade, contudo, de um tipo de treinamento especializado nos
problemas que circundam as questões indígenas. A antropologia voltada
para o estudo de problemas de desenvolvimento e políticas públicas
em suas muitas dimensões, entre elas o indigenismo, deve ser o eixo
principal desse treinamento, inclusive no repasse de métodos e técnicas
que, a meu ver, são parte constitutiva do que se chama “perspectiva”
ou “olhar antropológico”. Não crendo no “golpe de
vista” ou em que, tendo estudado A, saberei tudo de B porque A e B
são letras do alfabeto, julgo que a produção de conhecimento é essencial
à atuação conseqüente e que isso é algo que se pode aprender e treinar,
inclusive para os trabalhos “aplicados”. Esse tipo de treinamento
deveria ser facultado a todos que tivessem curso de terceiro grau
e deveria ter desdobramentos para capacitação em questões jurídicas,
sanitárias, educacionais e de política cultural. Sua conclusão implicaria
a redação de uma monografia: a experiência da escrita de trabalho
de maior fôlego é fundamental para a reflexão, e logo, para a ação.
Em uma revisão da administração de Estado para uma “nova política
indigenista”, esse treinamento deveria ser obrigatório para os ocupantes
de certas posições, atingindo mesmo certos integrantes da cooperação
internacional, pois seu desconhecimento – ou a superficialidade de
seu conhecimento – dos problemas indígenas parece-me um dos problemas
a enfrentar e (por que não?) corrigir. Não creio que as deficiências
estejam tout court na pós-graduação em antropologia, bastante
solidificada no Brasil, mas necessitando de revisões diante das mudanças
de regras no meio do jogo, comuns na política brasileira. Embora as
temáticas não contemplam certos problemas, o modelo é bem resolvido.
Mas há o que ajustar no plano da graduação, no qual, além de cursos
básicos de etnologia e lingüistica antropológica em maior quantidade,
certos temas e problemas poderiam ser revistos e inseridos. Da mesma
maneira, poderiam surgir outras formas de curso de especialização. É necessário publicitar
as experiências em antropologia da ação e em indigenismo, escrevê-las,
publicá-las e debatê-las. Há um longo envolvimento de antropólogos
em processos aplicados de desenvolvimento no Brasil e a ação indigenista
tem de sair da categoria “memória” para ganhar os signos daquilo que
realmente é: implementação de políticas de Estado – e isso significa
não o que é planejado, mas o que é possível executar. Por fim, deve-se estimular
a investigação sobre as questões indígenas feitas por índios e não
índios criando-se fundos para pesquisa, o que permitirá conhecer aspectos
ainda obscuros dos problemas indígenas, além de ampliar a quantidade
de pessoal qualificado. Em estados e regiões de elevada população
indígena, é necessário estudar modos pelos quais cursos como o acima
delineado sejam oferecidos regularmente aos índios interessados como
parte do sistema formal de educação. Esses são alguns dos pontos para
o começo de uma discussão.
Participe! Envie-nos seu comentário : iceuniao@uol.com.br - www.uniaonet.com |
.